POESIA
São Paulo a sangue frio na estreia de Leandro
Rodrigues
Por Jesse Navarro
“Aprendizagem Cinza” (Editora Patuá, 2016) é o
livro de estreia do poeta paulista Leandro Rodrigues. Trata-se de um conjunto
de poesias que mostram o lado realista e denso da capital de São Paulo. Uma
verdadeira viagem sangrenta e real pelos cantos da cidade mais rica do Brasil.
O livro já começa com o misterioso título “São Paulo IX”, Concretismo puro.
Em “São Paulo IX”, Leandro Rodrigues roteiriza
o que nunca seria dito por um apresentador de programas policialescos, apesar
do assunto ser um crime passional. É mostrada uma visão de quem está atrás das
lentes em ritmo de cinema noir.
Em “Astraçã”, vemos um show de vogais que não
são apenas vegetativas. São vogais que mostram aquela capital do turista
(francês, será?), aquele que usa uma bússola e morre. Em cada verso se faz
presente a arquitetura pós-moderna que só São Paulo tem. Prédios triangulares,
assimétricos, ruas escuras onde o cotidiano mostra sua face: decomposta,
criminosa, real como só o sangue de um poeta pode ser.
É uma São Paulo onde até Bukovski aparece. Ele
mesmo, o norte-americano velhaco, o famoso poeta das mil garrafas de Bourbon.
Na poesia, o gênio vomita e enfrenta o aço de Sampa. Temos aqui uma linguagem
não-linear, onde o cinza do título mancha todas as ruas da cidade em pleno
século XXVIII. Vira chumbo, lixo, miséria, uma realidade cinzenta como nem o
mais pessimista poderia imaginar. A chacina prossegue em “São Paulo V”: aquele
mesmo sangue que os mais velhos espremeram nas antigas páginas do jornal
Notícias Populares. O poeta se indigna diante um crime passional e
entrega o que chama de linguagem publicitária. Os números vão crescendo ao
mesmo passo do lixo, da miséria, da hecatombe visionária. O poeta insatisfeito
aumenta o caracter da letra, dando o efeito visual que desconstrói o
sangue reciclado. Os rios Pinheiros e Tietê são desmascarados como desova de
defuntos, um cenário onde o velho Buk, o bêbado escritor, certamente pensaria
em se jogar, bradando: “preciso resgatar minha garrafa!”.
A poesia que puxa para a antiga forma de
Literatura é justamente onde o poeta se enterra: “Soneto à cidade de São
Paulo”. Não satisfeito na condição de morto, ele dança com defuntos numa
perigosa valsa que não perdoa nem Mário de Andrade. E quem será o Urubu-Rei que
voa entre escombros, farpas e estilhaços? A cidade dos travestis que têm faca
entre os dentes, cortando a noite em mil palavras. Então temos mais do que a
modernidade, temos os primórdios do século XX em São Paulo de 1937, 1910, 1915
(a melhor peça do livro, que dá voz aos cavalos), até o sangue impiedoso nas
roupas do varal de 1918.
Não se trata de obra recomendável para
deprimidos: é veneno que escorre pela boca, sangue que esparrama até no poema
da tarde, um caleidoscópio onde podemos ver Lorde Byron, Zé do Caixão, Buñuel,
todos esqueletos nas ondas do mar. Hilda Hilst aprovaria esse livro, certamente
colocaria na sua estante entre os favoritos. Eis uma poesia gótica, misteriosa,
profunda, enigmática, sangrenta, terrível. Rara na atual geração.
Até Drummond é revisitado, sempre gauche. O anjo é o próprio
poeta que não dá a mão para si mesmo no espelho, apenas franze a testa. Tão
surreal quanto o barulho de um jasmineiro que, pasmem, “no seu barulho aponta
um cifrão”. Não falta também o lado musical de Leandro: a letra “Memória
dissoluta” fez parte da sua passagem por bandas importantes nos anos 90, como
Onírico e Redator S/A.
Difícil escolher a melhor poesia, mas
certamente “Semiótica” vai além do conceito de Marshall McLuhan. Não temos aqui
nem o meio, nem a mensagem. Temos um par de olhos dentro do mais surreal dos
copos da Língua Portuguesa. O livro que ficou na estante passa a
assombrar o “homem de papel”. O habitante da bruta capital, perdido em becos,
uma hora vai até os rios. E até lá acha a morbidez de mortos afogados que
continuam nadando. Há também espaço para pássaros, raras figuras que não
sangram em “Aprendizagem Cinza”. O poeta, que é um professor da Língua
Portuguesa, mostra habilidade verbal em “Vapor Barato”, título que alude a
famosa música de Jards Macalé e Waly Salomão: “Lentas horas / só meu coração /
e va po ra”.
“A golpes de martelo” ficou consagrada no
programa “Estúdio Blen Blen Entrevista” na internet. Um piano segue o compasso
da narração, a poesia concreta se assume no estilo que consagrou os irmãos
Campos e Décio Pignatari nos anos 50. “Aprendizagem Cinza”, o livro, é uma
estreia pesada, realista, sem gracejos ou romantismos. Além de ser boa leitura,
é também uma aula para novos poetas. Que venha o novo.